Bons tempos aqueles em que até mesmo a bandidagem do Centro Histórico cuidava da gente

teixeira foto nova

José Carlos Teixeira*

“Lavai nossos medos nas marés

Guia nossos passos, nossos pés

Olhos guardiãs de Salvador”

(Olhos de Xangô, de Jorge

Portugal e Lazzo Matumbi)

 

Os orixás nos protegiam, é verdade. Guiavam nossos passos. Mas alguém mais cuidava da gente em meados dos anos 1970, quando circulávamos tranquilos e despreocupados pelas ruas do degradado Centro Histórico de Salvador – o conjunto, que reúne alguns um dos mais importantes exemplares da arquitetura colonial brasileira, só seria declarado Patrimônio Cultural da Humanidade, pela Unesco, em 1985, o que abriu caminhos para o início de sua recuperação, na década seguinte.

Naquela época, salvo a Tribuna da Bahia, todas as redações dos jornais, inclusive das sucursais dos veículos do Sul do País, eram no centro. Por conta disso, muitos de nós, jornalistas, circulávamos por aquelas antigas e apertadas ruas e ladeiras de prédios em avançado estado de degradação. Fosse de dia, para comer uma moqueca de arraia em O Tempo, pequeno restaurante popular no subsolo de um casarão no Largo do Pelourinho, cujo dono, Joaquim, ali mantinha um urubu como animal de estimação; no início da noite para uma cerveja na Cantina da Lua, sob as bênçãos de Clarindo, no Terreiro de Jesus; para ouvir um voz-e-violão no bar de Beto Fubá, mais tarde; bebericar e jogar conversa fora na Galeria 13, de Deraldo; ou para as últimas cervejas, já na madrugada, no Guaciara, um decadente hotel barato no Maciel de Cima.

Ninguém mexia com a gente. Pelo contrário, muitos moradores da área nos olhavam até com algum respeito e simpatia. Mais tarde, descobriríamos o motivo: a maioria achava que aqueles jovens barbudinhos trabalhavam no Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia, o Ipac, que fazia o levantamento preliminar para o programa de recuperação do patrimônio arquitetônico que o governo do Estado começaria a executar anos depois.

O trabalho dos técnicos do Ipac e a anunciada recuperação dos velhos casarões, então transformados, quase todos, em casas de cômodos, alimentavam a esperança em uma vida melhor para todos. Daí veio a ordem, dada pelo mandachuva da área, que se dizia um ex-marginal, mas na verdade seguia exercendo com grande truculência a gigolotagem, explorando grande parte das prostitutas da zona. Ninguém mexe nos meninos, anunciou.

Às vésperas do início das filmagens de “Tenda dos Milagres”, o filme de Nélson Pereira dos Santos baseado na obra homônima de Jorge Amado, havia uma preocupação com a segurança dos atores, técnicos e equipamentos. Quase todas as locações do filme ficavam no Maciel, uma comunidade onde conviviam grupos familiares, prostitutas, gigolôs, desocupados, ladrões, biscateiros, traficantes e viciados.

Após muita conversa com lideranças da comunidade e com os técnicos do Ipac, a produção do filme tomou uma decisão ousada: contratou Sergipinho, um morador local, como chefe de segurança. Só que o contratado não era um morador qualquer. Era o mandachuva. Exatamente aquele que ordenara: ninguém mexe nos meninos.

Sergipinho era um velho conhecido da polícia. Pesava contra ele alguns mandados de prisão, nunca executados pois os policiais não conseguiam encontrá-lo – embora todos os dias de jogo na Fonte Nova ele pudesse ser visto trepado no alambrado que separava a geral do campo, comandando com energia e determinação, a torcida do Bahia.

Deu certo: as filmagens se encerraram sem qualquer registro de incidente com os atores e técnicos – muitos dos quais, aliás, haviam aderido com vontade e despreocupação às noitadas madrugada adentro nos bares e botecos da área – e sem o sumiço de qualquer equipamento. Valeu a ordem: ninguém mexe com nada do povo do cinema.

 

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Nesta sexta-feira, 28, empresários, trabalhadores e moradores do Centro Histórico, juntamente com artistas, produtores culturais e representantes do setor de turismo farão uma manifestação, a partir das 10h, no Largo do Terreiro de Jesus. O objetivo é cobrar das autoridades, mais uma vez, ações concretas para os inúmeros problemas daquela região da cidade, que já resultaram em demissão de trabalhadores e fechamento de lojas.

Em comunicado encaminhado à imprensa, a Associação Centro Histórico Empreendedor (Ache), organizadora da manifestação, diz que pretende também sensibilizar a opinião pública para os graves problemas vividos por um dos mais preciosos conjuntos arquitetônicos do país, “no que se refere a segurança pública, ordenamento dos informais, assédio e extorsão aos visitantes, preservação do patrimônio, falta de infraestrutura e muito mais”.

Antecipando-se à manifestação e pressionado pela escalada de violência e criminalidade registrada nas duas últimas semana, com roubos, assaltos e agressões a turistas, o governo estadual anunciou na quarta-feira, 26, um reforço de 30 novos soldados da Polícia Militar para atuar no patrulhamento preventivo e repressivo na área.

Não sei se vai resolver. Ando muito cético e chego a pensar que seria melhor chamar um Sergipinho. Talvez desse certo.

 

*José Carlos Teixeira é jornalista, graduado em comunicação social pela Universidade Federal da Bahia e pós-graduado em marketing político, mídia, comportamento eleitoral e opinião pública pela Universidade Católica do Salvador.

 

 

 

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