Câmara de Feira faria melhor se atribuísse a CPI da Saúde aos russos e cancelasse tudo

foto texeira nova

Os documentos mentem tanto quanto os homens.

(Yury Nikolaevich Tynyanov, escritor russo)

José Carlos Teixeira*

 

Está bem, não é conveniente, para dizer o mínimo, citar os russos – qualquer russo, seja ele gente ou objeto, coisa material ou elemento imaterial, tanto faz – nesses tempos sombrios que vivemos desde que a Rússia invadiu a Ucrânia.

Não só pelo conflito, pela estupidez da guerra, em si um fato condenável, que já provocou centenas de mortes e levou mais de 2 milhões de ucranianos a se refugiarem no estrangeiro. Mas também pelas diversas manifestações de obscurantismo e ignorância que se seguiram ao rugir das armas, espalhando-se mundo afora em demonstrações igualmente condenáveis de incivilidade, rudeza, incompreensão, incultura, estupidez, boçalidade e atraso.

Por exemplo, em Milão, a Universidade Bicocca cancelou um curso sobre a obra do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881); o Balé Bolshoi teve uma turnê americana cancelada; os concertos do maestro russo Valery Gergiev com a Filarmônica de Viena, no Carnegie Hall e no Scala de Milão foram suspensos; e até mesmo o Bar da Dona Onça, reduto da boemia paulistana, retirou do cardápio o estrogonofe, tradicional prato russo que caiu no gosto do brasileiro. Tudo, pretensamente, por conta do conflito entre Rússia e Ucrânia.

Mas vamos aos fatos que nos trouxeram à lembrança a frase do escritor russo Yury Nikolaevich Tynyanov (1894-1943) que abre esta coluna.

A Casa da Cidadania, como se autodenomina a Câmara de Vereadores de Feira de Santana, instaurou uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) para apurar supostas irregularidades pretensamente cometidas pelo governo municipal na área da saúde. A primeira providência da tal CPI, obviamente, foi convocar para depoimento o titular da Secretaria Municipal de Saúde, Marcelo Britto.

Só que o vereador Paulão do Caldeirão, um dos mais exaltados opositores do prefeito Colbert Martins, provavelmente desconfiado de que o convocado, mesmo sob juramento, poderia faltar à verdade – que é um modo delicado de dizer que o secretário poderia mentir, uma expressão bastante usada antigamente, quando ainda havia um certo pejo de dizer na lata que alguém estava mentindo – decidiu também requisitar documentos.

Certamente desconhecendo a observação do escritor russo, de que os documentos podem mentir tanto quanto os homens, ele pediu a cópia integral das  prestações de contas das empresas terceirizadas que fazem a gestão das unidades de saúde e intermediação de mão-de-obra, com notas fiscais, contratos e movimentação de pessoal referentes aos últimos três anos.

No início da tarde da quarta-feira passada, data marcada para o depoimento do secretário, um caminhão-baú estacionou em frente ao prédio da Câmara. Pessoalmente, o secretario Marcelo Britto comandou a operação de descarrega de caixas e mais caixas, contendo cerca 380 mil documentos, em atendimento à solicitação.

A sessão para ouvir o secretário acabou não acontecendo. Foi adiada para uma data indeterminada. Como nenhum funcionário da Câmara se dispôs a receber os documentos, Britto convidou duas testemunhas de uma casa comercial vizinha para atestar a entrega das caixas, depositadas na portaria do prédio.

Agora, o problema está criado: caso a Câmara resolva examinar os documentos que pediu, a CPI será extinta sem chegar a qualquer resultado. É que ela tem prazo de 120 dias, prorrogável por mais 60, para conclusão dos trabalhos. Só que a consulta dos 380 mil documentos pelo vereador que os requisitou vai consumir-lhe 1.055 dias de trabalho. Isso considerando-se o tempo de um minuto para que ele examine cada um deles e o expediente normal de seis horas. Mesmo que sejam requisitados 20 funcionários para a tarefa, todos trabalhando em tempo integral, não dará tempo: na próxima segunda-feira completam-se os 120 dias da instalação da comissão. Restarão apenas 60 dias, caso haja a prorrogação.

Bom, a CPI também pode andar sem que os documentos sejam examinados. Mas, se for assim, por que eles foram requisitados? Melhor dizer que é tudo coisa dos russos. Bota a culpa na guerra, cancela e devolve a papelada ao som da balalaica. A gente ia entender.

 

*José Carlos Teixeira é jornalista, graduado em comunicação social pela Universidade Federal da Bahia e pós-graduado em marketing político pela Universidade Católica do Salvador.

 

 

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