Contra o preconceito, as canções do baiano Gordurinha, que nasceu há cem anos

foto texeira nova

José Carlos Teixeira*

“É de trás pra frente
É de frente pra trás
Se não aguenta a rima
Caboclo não cante mais”

(De trás pra frente, de Gordurinha)

 

Nesta terça-feira, vamos deixar de lado as eleições, os candidatos, os que não conseguiram se candidatar, e também dar um refresco ao governo, suspendendo momentaneamente o exercício do sagrado dever de criticar os malfeitos dos governantes – uma obrigação sagrada, sim, pois, afinal, imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados, como nos ensinava, com propriedade, nessa sacada genial, o saudoso Millôr Fernandes (1923-2012).

Vamos parar para festejar, pois nesta quarta, 10 de agosto, devemos comemorar o centenário de nascimento de um ilustre filho da Bahia: Waldeck Artur Macedo. Pouco conhecido por este seu nome de batismo, mas lembrado e reverenciado pelo apelido que lhe acompanhou a vida toda: Gordurinha, radialista, humorista, cantor e compositor, autor de Chiclete com Banana.

Não, meu jovem e apressado leitor, ele não foi o criador daquela banda de axé, que anos atrás amealhou um período de sucesso nos carnavais e micaretas inversamente proporcional à sua mediocridade musical. O Chiclete com Banana de Gordurinha é um clássico da música popular brasileira, bem humorado libelo contra a invasão do Brasil pela música norte-americana no final dos anos 1950. É aquele samba cuja letra diz:

Eu só ponho bebop no meu samba

Quando Tio Sam pegar o tamborim

Quando ele pegar no pandeiro e no zabumba

Quando ele aprender que o samba não é rumba

A primeira gravação de Chiclete com Banana, em 1959, foi feita por Jackson do Pandeiro – o que talvez explique o fato de Almira Castilho, mulher de Jackson, constar como coautora do samba: ceder a parceria ao intérprete, como uma espécie de pagamento, era uma prática comum naqueles tempos.

De lá para cá, foram dezenas de gravações – o Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB) registra 99 fonogramas, o último deles gravado em 2019, pelo grupo Ordinarius). Entre os muitos cantores que gravaram o samba estão Gilberto Gil, Mart’Nália, Jorge Veiga, Gal Costa, Zélia Duncan, Zé Ramalho, Eliana Pittman e Beth Carvalho com Daniela Mercury. Um sucessão!

Mas o que queremos destacar – e acho que esse é o mais relevante dentre os muitos motivos para reverenciarmos Gordurinha – é o seu pioneirismo em denunciar e atacar em várias de suas músicas,  sempre com um humor afiado, com mordacidade e ironia, o preconceito dos sulistas contra os nordestinos – aliás, ainda vivo nos dias de hoje, com vemos a todo momento na imprensa.

É dele, por exemplo, o delicioso Baiano Burro Nasce Morto:

“O pau que nasce torto
Não tem jeito morre torto
Baiano burro garanto que nasce morto”

 

E também o delicioso Baianada, parceria com Carlos Diniz:

Um baiano é uma boa pedida
Dois baianos uma coisa divertida
Três baianos uma conversa comprida
Quatro baianos um comício na avenida

O baiano nasceu pra falar, na Bahia tem muito doutor

 O Brasil foi descoberto na Bahia e o resto é interior”

 

Registre-se ainda a divertida Pau de Arara é a Vovozinha, sucesso com o Trio Nordestino:

“Vim da Bahia pro Rio de Janeiro
Pra ganhar dinheiro, desaforo não

Pau-de-arara é a vovozinha
Eu só viajo é de avião”

E ainda o coco Baiano Não É Palhaço, cuja letra denuncia :

Vê que piada infeliz inventaram agora:
‘Ajude a manter a casa limpa
Matando um baiano por hora’”

 

Ouvir – ou reouvir – os baiões de Gordurinha que tratam do preconceito contra os nordestinos é quase uma obrigação, nesses tempos tenebrosos que atravessamos, com uma parcela da população exibindo os mais variados tipos de intolerância, contra as mulheres, os negros, os homossexuais, os pobres, os que seguem as religiões de matriz africana… E o mais grave: açulados até mesmo por aqueles que têm a obrigação constitucional de denunciá-los e combatê-los.

Lá estou eu querendo voltar a falar de política… Mas não tem jeito. É preciso dizer também que Gordurinha foi, de certa forma, uma vítima do regime militar. Brizolista, logo após a deflagração do golpe, em 1964, ele avisou à família que iria à Rádio Mayrink Veiga e deu instruções para que queimassem livros e papéis comprometedores que porventura encontrassem na casa. Só voltou anos depois, para morrer de uma overdose em 16 de janeiro de 1969.

Para quem se dispõe a visitar a obra de Gordurinha (são apenas 41 canções listadas pelo Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira), recomendo ainda Súplica Cearense (Luiz Gonzaga dizia ter inveja, pois gostaria muito de ter composto esse baião toada), Vendedor de Caranguejo, Orora Analfabeta e o Mambo da Cantareira.

Boa audição. E viva Gordurinha!

 

*José Carlos Teixeira é jornalista, graduado em comunicação social pela Universidade Federal da Bahia e pós-graduado em marketing político pela Universidade Católica do Salvador.

 

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