Justiça proíbe o bater de tambor em bares da cidade baiana de Paulo Afonso

teixeira

José Carlos Teixeira*

“Tá no enredo, tá no samba do terreiro

Na marujada, na avenida, na congada

Tá na ciranda, na charanga, no divino

Na passarela é o rei da batucada

(Tambor, de Fernanda Abreu, Gabriel

Moura, Jovi Joviniano e Afrika Bambaataa)

 

Passaram-se 523 anos, desde aquela quinta-feira. Era o último dia de abril e véspera da celebração da segunda missa na terra recém-descoberta, a que Pedro Álvares Cabral dera o nome de Vera Cruz. Com a marcação de um tamboril tocado por um marinheiro, portugueses e nativos dançaram e bailaram animadamente, descreve Pero Vaz de Caminha, o escrivão da frota, em sua famosa carta ao rei Dom Manuel comunicando o achamento, tida como a certidão de nascimento do Brasil.

O tamboril era o segundo instrumento mais encontrado em Portugal na época e aquela foi a primeira vez que se ouviu seu baticum na terra recém-achada. Instrumento mais comum entre os portugueses, a gaita galega já havia dado o ar de sua graça dias antes: Diogo Dias, capitão de uma das 13 naus da esquadra cabralina e descrito por Caminha como um “homem gracioso e de prazer”, desceu à terra com um gaiteiro e meteu-se a dançar com os nativos.

Mas é o tamboril que nos interessa. Desde essa pequena efeméride, na chegada dos portugueses, o tambor, nas suas diversas variantes – inclusive as que aqui chegaram com os africanos escravizados, a partir de 1530, quando começou a colonização – tornou-se o instrumento musical mais comum no conjunto das manifestações culturais brasileiras. Do tambor de sopapo no Rio Grande do Sul, ao curimbó do Pará; do tamborim da escola de samba carioca ao alfaia do maracatu pernambucano; do timbal dos blocos afros baianos ao batá do tambor de mina maranhense; da zabumba dos trios nordestinos aos atabaques do candomblé.

Desde então o bater do tambor tornou-se presente em todos os cantos do Brasil. Quer dizer, em todos não. Desde meados do mês passado, ele está proibido em uma cidade baiana. Isso mesmo, na Bahia, terra tradicionalmente associada a música, alegria, batuque, percussão. Proibido por decisão judicial.

Em atendimento a uma ação movida pelo Ministério Público do Estado, o juiz Cláudio Santos Pantoja Sobrinho, da 1ª Vara da Fazenda Pública, decidiu proibir baterias e instrumentos de percussão nos bares e restaurantes da cidade de Paulo Afonso, no norte do Estado. Ficam permitidos apenas voz e violão – em caso de desobediência, a prefeitura, à qual cabe a fiscalização, fica sujeita a multa em valor não inferior a R$ 5 mil.

A promotora Daniele Cochrane Santiago Dantas Cordeiro, autora da ação, alegou que a medida visa combater a poluição sonora, em nome da proteção à saúde coletiva, e explicou que o Ministério Público, entre 2017 e 2022, recebeu 225 queixas contra o excesso de barulho causado pelo bater de tambores nos estabelecimentos que oferecem música ao vivo.

O equívoco, no caso, é confundir música com barulho. A lei do silêncio não proíbe o uso de instrumentos musicais, equipamentos de som ou quaisquer geringonças que produzam som. Estabelece apenas o controle do volume, de acordo com alguns critérios, como horário e proximidade, por exemplo. Nos casos em que esse controle é desobedecido, aplica-se penas ao infrator – e tão somente a ele.

Fico imaginando: se alguns ônibus do sistema de transporte público local passarem a fazer barulho por conta de defeito nos silenciosos, o que acontecerá? Pelo acontecido com os tambores, certamente o Ministério Público entrará com uma ação pedindo a proibição da circulação de ônibus nos limites do município…

Coincidentemente, na mesma semana em que o juiz determinou a proibição do bater de tambor em Paulo Afonso, fazia 60 anos que um grupo de músicos – o violonista e cantor João Gilberto, o sax-tenor Stan Getz, o pianista e compositor Antonio Carlos Jobim, o contrabaixista Tião Neto, o baterista Milton Banana e a cantora Astrud Gilberto – acabara de concluir, em um estúdio de Nova York, a gravação do maior disco da bossa nova: Getz/Gilberto.

O disco, gravado nos dias 18 e 19 de março de 1963, é um clássico, um dos álbuns de jazz mais vendidos de todos os tempos. Nele, a leveza com que Milton Banana conduz as baquetas e a vassourinha estabelece definitivamente a batida da bossa nova na bateria – assim como João o fez no violão.

Quem ouve qualquer uma das faixas de Getz/Gilberto certamente vai entender: tambores são instrumentos musicais – e não aparelhos de fazer barulho.

 

*José Carlos Teixeira é jornalista, graduado em comunicação social pela Universidade Federal da Bahia e pós-graduado em marketing político, mídia, comportamento eleitoral e opinião pública pela Universidade Católica do Salvador.

 

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