Vivemos uma crise mundial. A Grécia, por exemplo, quebrou. Tornou-se o primeiro país desenvolvido a dar calote no Fundo Monetário Internacional, o FMI. Por aqui, a situação poderia e deveria ser mais confortável. Mas não o é. Pagamos atualmente a conta de históricos desatinos econômicos, da má gestão e da corrupção generalizada em todos os níveis, esferas e partidos políticos.
Preços disparam, serviços como os de energia elétrica não param de subir, o desemprego cresce e os investimentos estão estancados. São sinais de recessão, não dá para negar. Os reflexos surgem em todas as áreas.
No campo do social, preocupam muito. Veja o que temos hoje na saúde pública: problemas tradicionalmente graves, como a falta de acesso, veem-se agravados pela carência crônica de recursos. O subfinanciamento do Sistema Único, o SUS, abate até centros de excelência.
Seria alentador, ao menos, se a saúde suplementar caminhasse bem. A realidade, contudo, não é essa. Operadoras continuam dificultando as coberturas, interferem vergonhosamente na autonomia de médicos e demais profissionais, cobram caro de seus clientes e remuneram irrisoriamente os prestadores. Aqui também são notórios os problemas de acesso.
Mais uma agravante no campo da saúde: a formação médica, lamentavelmente, é rasteira. O Exame do Cremesp evidencia a necessidade de ações urgentes para coibir a formação insuficiente de boa tarde das escolas médicas. Em sua edição 2014, submeteram-se à prova 3.359 recém-formados. Dos 2.891 inscritos de São Paulo, 55% (1.589) tiveram média de acerto inferior a 60% ao conteúdo apresentado. Entre os novos médicos de outros estados, a reprovação foi de 63,2% – indicativo que a situação, já insustentável em São Paulo, pode ser ainda pior em outros rincões. A falta de conteúdo é atestada em questões simples como o atendimento inicial a vítima de acidente automobilístico, a vítimas de ferimento por arma branca, casos de pneumonia, por exemplo.
Somos um dos recordistas em faculdades de medicina no mundo. Temos quantidade, mas nos falta qualidade. Agora mesmo ministérios da Educação e da Saúde acabam de autorizar a abertura de 2.290 vagas em instituições particulares de dez estados do país. São escolas de boutique sem o menor compromisso com a formação; só visam ao lucro. A abertura de escolas médicas é uma proposta de grande responsabilidade, uma vez que só se aprende medicina ao lado de quem sabe. Além disso, do ponto de vista da formação, o que deve ser valorizado é a educação médica e não simplesmente a escolaridade, que é apenas um fator muito pequeno nesse contexto. Educar significa preparar o indivíduo para a profissão e para a vida, dentro da construção de valores e cidadania, não apenas transmitir informações. Enfim, o quadro é assustador, além de desalentador, em particular para as próximas gerações, que estarão nas mãos de péssimos médicos.
De qualquer forma, avaliar escola por meio do aluno carrega viés enorme. Isso sem falar que é fundamental levar em conta o prático, não somente o teórico. Aliás, a medicina é fundamentalmente habilidade, ética e atitude, um exame teórico deixa de avaliar o graduado em sua plenitude.
Posso falar de cátedra, sem medo de errar. Sou professor e comumente encontro em residências médicas colegas aprovados com nota teórica elevada, que, na prática, ao passar em visita a uma enfermaria, não têm a menor noção de como examinar um doente. Abraham Verghese, 60, professor de teoria e prática de medicina na Universidade Stanford e autor de três best-sellers que tratam de humanismo, defende um pensamento muito interessante sobre os tempos atuais, em que a teoria e a tecnologia parecem prevalecer absolutas no campo da saúde. Ele sustenta que o paciente parece só existir no leito para justificar o que está no computador, ao que chama de “iPatient”. Ainda na visão desse grande mestre, que coaduna com o que ensino a meus alunos por toda minha trajetória acadêmica, “há coisas que só a mão humana pode fazer, como ver se há dor em um local em particular”.
O humanismo é e sempre foi o alicerce da prática médica. Sir William Osler (1849-1919) exerceu mais que qualquer outro homem, extensa e profunda influência sobre a medicina. Ele tirava os alunos dos anfiteatros, da área teórica, e os levava para as enfermarias, porque a medicina se aprende ao lado de quem sabe, não tem outra forma, e ao lado do doente na enfermaria e no ambulatório que adquirimos tato, sensibilidade e saberes.
São ensinamentos dessa magnitude que devem pautar uma urgente, necessária, indispensável e nova metodologia de avaliação dos futuros profissionais de medicina.
Esperamos, ávidos, por providências em todos os segmentos relacionados à saúde e ao bem estar. Gente merece respeito!
*Antonio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica