Os fantásticos microcontos

MARCONDES

“A mulher, linda, maravilhosa, agarrou-se, no desespero, ao seu pescoço, tentando salvar-se do afogamento. Ele sabia nadar, mas se deixou arrastar, com ela, pela correnteza. E teve tempo de sussurrar-lhe ao ouvido: Você é vida!”

Este é um dos 80 microcontos que o jornalista e escritor Marcondes Araujo reuniu no livro minimalismo (assim mesmo, com minúscula), lançado este ano, no Museu de Arte Contemporânea de Feira de Santana (MAC) pela Editora Arribaçã.

“Tento que obter o máximo de intensidade com o mínimo de palavras, usando, para isto, os recursos da antítese, do paradoxo, do absurdo, da surpresa e da reviravolta”, resume o autor a essência do microconto.

Marcondes Araújo é autor também do livro de contos Jeremias Ladrão-de-Cavalo e outros contos, lançado em 2014 pela editora do MAC;  e de Piolhos-de-cobra, vencedor do XI Prêmio Literário Livraria Asabeça 2012 – Categoria Contos, e lançado em 2013 pela Editora Scortecci, de São Paulo.

Possui ainda dois romances inéditos (Lampião e Deus-te-guie – O encantamento de um cangaceiro chinfrim, e Memórias de um possível vencedor), e mais dois livros de contos, também inéditos (Histórias cruéis da infância e Contos Fantásticos), além de vários contos e microcontos avulsos.

Marcondes Araujo trabalha como editor de texto na TV Subaé, afiliada da Rede Globo em Feira de Santana.

Alguns microcontos de Marcondes Araujo:

Despertação

A puta véia levantou-se diante do cabra ruim e falou, ajeitando a calçola velha e o sutiã rasgado: “Eu sou muito mais do que esses meus sentimentos atrapalhados”. 

Bala perdida

Foi um momento fantástico na minha vida. Emparelhamos os carros no sinal vermelho. Aí aumentei o som, um baião maravilhoso de Dominguinhos. Ela começou a dançar, ao volante, sorrindo e olhando para mim. Vi logo que a amaria. Mas veio uma bala perdida.

Meus avós

Ele, sentado em um banquinho de couro cru, os cotovelos apoiados nos joelhos, cruzando as mãos grossas e calejadas; ela, deitada em uma cadeira de balanço, as pernas varicosas estiradas, a cabeça descansando em um braço. Os dois contemplando, no alpendre, a colina em frente, a caatinga inóspita, cravejada de facheiros e mandacarus. Era assim que os dois conversavam, e se amavam. Em silêncio. 

Briga de trânsito

Tivemos uma discussão no trânsito por causa de uma bobagem, ele me encheu de desaforo, eu disse pra ele “amigo, amanhã de manhã você vai estar arrependido de tudo que você me disse”, achando eu que estava dando a ele uma lição de moral, mas ele achou que era uma ameaça, puxou a arma e me matou.

Choro de puta

A prostituta velha foi para o meio da rua, abriu os braços e fez calar todo o quarteirão, cantando com sua voz potente e melodiosa: “Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de meu amor”. E o velho carroceiro, que bebia comigo ao pé do balcão, cuspiu no chão, virou o resto de pinga e falou: “Entende agora o que é sentimento?”. 

Corno

Ele pisou no pescoço da mulher, cuspiu no rosto dela, guardou o revólver na cintura e disse: “A tua sorte é que eu te amo”.

Estética da ignorância
Não deixa de ser bonito: o livro aberto, em cima do monturo de lixo, com as páginas sendo passadas, uma a uma (talvez lidas), pelo vento.

Naufrágio

A mulher, linda, maravilhosa, agarrou-se, no desespero, ao seu pescoço, tentando salvar-se do afogamento. Ele sabia nadar, mas se deixou arrastar, com ela, pela correnteza. E teve tempo de sussurrar-lhe ao ouvido: Você é vida!

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