“Respire, Dona”

André Dória

Por André Dória*

 

Foto: Divulgação

Os caminhos da abordagem da loucura são marcados pelo encontro com o imprevisível, com tudo aquilo que escapa aos manuais e protocolos, comuns em diversos setores da saúde e cada vez mais presentes na saúde mental. A loucura se apresenta como um acontecimento nebuloso, que suscita mais perguntas do que respostas.

No transtorno mental, generalizar o tratamento é sempre empobrecedor, diferentemente de um quadro orgânico, cujos tratamentos muitas vezes são generalizados. Um doente de sífilis, na Rússia, possivelmente será tratado como um doente de sífilis no Brasil. Na saúde mental os percursos são outros. Cada um enlouquece por uma causa própria. É comum ouvirmos a expressão “adesão ao tratamento” como sinônimo de sucesso do tratamento, embora o percurso que levou a pessoa ao tratamento tenha sido tão imprevisível e singular quanto o próprio processo de adoecimento. Ilustro a situação: uma paciente psicótica, resistente às medicações, disse-me que seu psiquiatra finalmente lhe prescrevera um remédio que lhe fazia bem, a Risperidona. “Como não usar um remédio que me diz: respire, dona!?”.

A indústria farmacêutica notou que há um parasita que nos habita. O equívoco, no entanto, é que esse parasita não pode ser isolado, como a molécula de uma nova droga pesquisada. Esse parasita, chamado linguagem, é incontrolável e imprevisível. Por isso investe-se em marketing tanto quanto se investe em pesquisa. Concerta, Sonata e outros tantos nomes são criados por publicitários que, ironicamente, voltam séculos no tempo até as palavras de Hipócrates: “Primeiro, use a palavra… Depois, use a droga. Então, o bisturi”. Concerta para “consertar” o TDAH, Sonata para “ninar” o insone.

O problema é que sempre há o imponderável, um imprevisível “respire, dona”, que põe em xeque o investimento na produção de um nome comercial. Sobretudo quando se trata da psicose e de sua impossibilidade em responder aos ideais de adesão ao tratamento, senão por uma causa particular de cada um e que não pode ser replicada em outros pacientes.

Não foi a droga que tratou a palavra da paciente psicótica, mas o inverso; sua palavra foi que tratou a Risperidona e lhe conferiu um sentido muito particular para, somente assim, a droga chegar aos esperados efeitos psicofarmacológicos. A possibilidade de respirar, para alguém que padece de “uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida”, nas palavras de Lacan, possibilitou uma retomada de aposta na vida, uma leitura metafórica vital da medicação.

O diabo mora nos detalhes. Quando a clínica em saúde mental se baseia somente em manuais de diagnóstico, o detalhe é exorcizado e, com ele, a possibilidade da tão buscada “adesão ao tratamento”.

*Psicólogo, Coordenador do Programa de Tratamento do Transtorno Bipolar da Holiste e Mestre em Psicologia pela UFBA.

 

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