Conselho Estadual de Cultura patrulha os festejos juninos de Serrinha

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José Carlos Teixeira*

“Olha pro céu, meu amor
Vê como ele está lindo
Olha praquele balão multicor
Que lá no céu vai sumindo”

(Olha pro céu, de Luiz

Gonzaga e Zé Fernandes)

 

Foi no Carnaval de 2000. Início da tarde de domingo. O trio elétrico do bloco Os Corujas embicou pela Rua João das Botas e entrou no Campo Grande, ponto inicial do roteiro do desfile pelo Centro de Salvador em direção à Praça da Sé.

Sobre o caminhão, a longa cabeleira solta aos ventos, a voz cristalina de Gal Costa inundou o largo e surpreendeu os foliões que aguardavam a chegada do bloco com os mais que conhecidos versos de Vinicius de Moraes para a música de Tom Jobim.

“Vai, minha tristeza
E diz a ele que sem ele não pode ser
Diz-lhe numa prece
Que ele regresse
Porque eu não posso mais sofrer”

Um espanto. Nunca antes, na história do carnaval baiano, alguém ousara puxar um bloco carnavalesco com uma levada de bossa nova. E que bossa nova, meu Deus! Logo Chega de Saudade, a mais emblemática canção bossa-novista, marco inicial de um estilo musical, que até hoje encanta o mundo com a complexidade dos acordes de jobinianos.

Mas ninguém se fez de rogado. Os foliões seguiram o trio naquele compasso mais lento, sem precisar usar os cotovelos para abrir o caminho, até que, já na Rua Forte de São Pedro, Gal mandou o Balancê (marchinha de Braguinha e Alberto Ribeiro), trazendo a multidão de volta daquela viagem:

Quero dançar com você
Entra na roda, morena, pra ver
O balancê, balancê

Foi mais ou menos assim, também, quando Luiz Gonzaga abriu seu matulão e despejou xotes, maracatus e baiões do alto do trio elétrico Carnaforró, ao lado de Gereba e Dominguinhos, pela Avenida Sete afora, durante os quatro dias do Carnaval de 1986.

A mesma coisa com Milton Nascimento, que invadiu o circuito Barra-Ondina em 1998 cantando Maria, Maria e outras daquelas toadas mineiras com que ele conquistou o mundo. Ou com Djavan, que mandou Samurai de cima do caminhão no mesmo ano. Ou ainda com Cássia Eller e seu pop rock do alto do trio do bloco Eva, a convite de Emanuelle Araújo, em 2000, ou quando o gaúcho Renato Borghetti, o Borghettinho, puxou as milongas e fandangos de sua terra com sua gaita no carnaval de 2007.

Essa multiplicidade de ritmos e gêneros musicais, esse respeito à musicalidade de cada artista visitante, essa permanente abertura ao novo, esse jeito de entregar-se e, ao mesmo tempo, apossar-se antropofagicamente do que lhe chegava às portas, mais uma constante disposição de despir-se de preconceitos, fizeram com que o carnaval baiano ganhasse características únicas e Salvador se tornasse a meca de foliões de todo o país.

Ao longo desse período, nunca ninguém se arvorou a dizer que o canto de Milton não servia para carnaval, muito menos o rock de Cássia, a gaita de Borghettinho, a levada blues de Djavan, o pop rock de Lulu Santos, ou clássicos da música erudita – ah, quem viu não esquece Armandinho executando o Bolero de Ravel, Ademar e a Banda Furta Cor tocando a Ave Maria de Bizet, ou Luís Caldas apresentando diversos temas de Bach e Beethoven no encontro de trios, na Praça Castro Alves, na madrugada de uma quarta-feira de Cinzas.

Daí a minha estranheza em ver o Conselho Estadual de Cultura aprovando – por unanimidade, diz-se – uma moção de repúdio ao fato de a Prefeitura de Serrinha ter incluído na grade da programação dos festejos juninos uma apresentação de Alok, tido como um dos quatro melhores DJs do mundo na atualidade.

A alegação é que a música de Alok descaracteriza os festejos juninos. Como se há muito tempo os festejos juninos não tivessem evoluído e se transformado em espécies de festival, abrigando as mais diversas tendências da cena musical da atualidade.

Em princípio, pensei tratar-se de mais um desculpável caso de saudosismo cultural. Sei o que é isso. Afinal, cresci em Feira de Santana vendo Luiz Gonzaga tocar e cantar na calçada das Casas Pernambucanas, na esquina da Rua Marechal Deodoro com a Praça da Bandeira, em dia de feira-livre, ou do alto dos abrigos Nordestino e Marajó. Tenho saudade, pois. Mas é só isso. São outros tempos e, como se dizia, o mundo gira e a Lusitana roda.

Como, na moção, não há defesa da volta dos balões ao céu, como era antigamente, quando ainda não tínhamos consciência ecológica, nem se pede o uso de roupas com remendos nos dias da festa, estou mais propenso a achar que é apenas um mero e inútil caso de patrulhamento institucionalizado – o que, aliás, não está nas atribuições desse órgão colegiado do Sistema Estadual de Cultura, o qual não tem ingerência alguma sobre as prefeituras.

A propósito, embora atue nos mais famosos palcos do mundo, Alok conhece o sertão da Bahia. Ele tem apoiado o projeto social Retrato da Esperança, da Fraternidade Sem Fronteiras, que envolve construção de casas, perfuração de poços de água potável equipados com dessalinizadores, construção de centro educacional e instalação de energia elétrica por meio de placas solares em casas da zona rural, em Canudos, a apenas 225 quilômetros de Serrinha.

Bom menino, esse Alok!

 

*José Carlos Teixeira é jornalista, graduado em comunicação social pela Universidade Federal da Bahia e pós-graduado em marketing político pela Universidade Católica do Salvador.

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