Construção de hidrelétrica ameaça maior quilombo do Brasil

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Há muitas lendas e versões sobre o nome do Rio das Almas, que corta o nordeste de Goiás. Todas elas, porém, envolvem mortes ou algum relato trágico. É por isso que, quando esse curso de água passa em uma parte do território kalunga, um território quilombola, os locais o chamam de Rio Branco.

Além das lendas, o rio é alvo de outro temor dos kalungas: o projeto de construção da Pequena Central Hidrelétrica (PCH) Santa Mônica. Há 20 anos, a empresa Rialma, de Emival Caiado, propõe instalar no território Kalunga a hidrelétrica. Emival é primo do político local e hoje governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM).

O projeto sofre resistência dos moradores quilombolas e até uma Ação Civil Pública foi aberta pelo Ministério Público Federal (MPF). Seja como Rio das Almas ou Rio Branco, é deste rio que parte dos kalungas tiram água para beber, tomar banho e cozinhar.

A água encanada e o saneamento ainda não chegaram para a comunidade Vão de Almas, que seria afetada diretamente pelo empreendimento. Ao todo, os kalungas estão dividido em 39 comunidades pelo território. São cerca de 8 mil quilombolas, sendo que 300 famílias vivem no Vão de Almas.

Se mantido o projeto e a PCH Santa Mônica for instalada rio acima do território kalunga, na cidade de Cavalcante (GO), ela terá 30 megawatts de potência instalada. Para comparação, somente uma das 14 unidades de geração em Belo Monte tem capacidade para gerar 600 MW. O projeto traz preocupação de impactos ambientais e sociais para os quilombolas. “Quatrocentos homens trabalhando aqui, a gente sabe que vai trazer muita coisa errada aqui para dentro”, disse Vilmar.

Segundo um laudo pericial produzido pelo MP de Goiás, que também era autor do processo, o Rio das Almas sequer tem vazão de água suficiente para nutrir uma hidrelétrica. Os dados apontados nos estudos estariam exagerados. O laudo também critica a falta de indicação de programas de recuperação de áreas que seriam degradadas pelos canteiros de obras. Também não foram apresentados os planos de construção das estradas de acesso ao empreendimento. O impacto dessas vias, portanto, também permanece desconhecido.

Há ainda o questionamento sobre a falta de realização de consulta pública, como prevê a lei. A convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), tornada lei por decreto presidencial em 2004, prevê a necessidade de consultar os povos indígenas e comunidades tradicionais sobre medidas que os afetem, como grandes obras.

A advogada Vercilene Francisco Dias, da comunidade kalunga Vão do Moleque, vê ainda um motivo histórico para a preservação do local. A serra onde pode ser construída a hidrelétrica serviu de rota de fuga e proteção para os escravos que formaram o quilombo.

O quilombo kalunga se formou no início do século XVIII, por pessoas que fugiram do trabalho escravo em minas de ouro da região dos afluentes dos rios Tocantins e Paranã. O acesso difícil, com serras altas e rios no caminho, os protegeu, e, mesmo após o fim da escravidão, foi também o que os deixou isolados por muitos anos.

Na primeira metade do século XX, a “Marcha para o Oeste”, promovida pelo governo Getúlio Vargas para incentivar a ocupação do Centro-Oeste expandiu as fronteiras agrícolas e agropecuárias para o Norte do estado de Goiás, pressionando a comunidade kalunga. A mudança da capital para Brasília, em 1961, expandiu o sistema viário e aumentou a demanda por terras na região, causando conflitos com posseiros que já duram décadas.

Em 1991, o estado de Goiás sancionou a lei que constituiu o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga. O texto da lei diz que o estado deve garantir aos habitantes “a propriedade exclusiva, a posse e a integridade territorial da área delimitada e protegê-la contra esbulhos possessórios”.

 

*G1

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