“Todo menino é um rei
Eu também já fui rei
Mas, quá! Despertei”
(Todo Menino é um Rei, de Nelson
Rufino e Zé Luiz do Império)
“Agora é a vez do menino”, comandou o homem, colocando a criança sobre a mesa em torno da qual se reunia um grupo de músicos. Era 8 de dezembro. Salvador festejava Nossa Senhora da Conceição, a padroeira da Bahia. Toda a área da Cidade Baixa, no entorno da imponente Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, fervilhava de gente. Alguns, devotos que iam fazer pedidos à Virgem Imaculada. Outros, fiéis que iam agradecer graças recebidas. Uns poucos, para renovar promessas ainda não atendidas pela santa. A maioria, porém, ali estava apenas pela festa, para beber e comer nas barracas e cair na folia, dançando e cantando nas rodas de samba.
Grande parte era gente do mar: marinheiros, saveiristas, pescadores – afinal, Nossa Senhora da Conceição é identificada no sincretismo religioso afro-baiano com Iemanjá (Odôiyá!), orixá poderosa, dona das águas do mar da Bahia. Mas havia também feirantes, pequenos funcionários públicos, barraqueiros, comerciários, artesãos, trabalhadores em geral e donas de casa.
Perto do enorme prédio do Mercado Modelo (que um incêndio destruiria completamente em 1969), junto à rampa onde encostavam os saveiros que levavam e traziam produtos da capital para as ilhas e localidades do Recôncavo, grupos de capoeiristas se exibiam, pernas e braços cortando o ar velozes, em movimentos ritmados marcados com cantos, toques de berimbaus e chocalhar de caxixis. Vendedores de frutas ocupavam o espaço próximo ao antigo prédio da Casa da Alfândega (para onde os barraqueiros do Mercado Modelo seriam transferidos, dois anos após o incêndio devastador, e onde estão até hoje). Mais além, espalhadas pelo chão, variadas peças de cerâmica produzidas pelos oleiros de Maragogipinho.
Em um trecho mais tranquilo, quase em frente ao Elevador Lacerda, em uma das barracas de comidas e bebidas, formara-se uma animada roda de samba com um grupo de músicos sentados em bancos em volta de uma mesa, onde repousavam copos e pratos. No intervalo após uma série de sambas-de-roda, um dos homens afastou os copos, garrafas e pratos da mesa para abrir espaço e gritou: “Agora é a vez do menino. Deixa o menino cantar”. E sem perder tempo colocou a criança sobre a mesa.
Compenetrado, o menino olhou para o tocador de violão, como quem procura o tom certo e soltou a voz pequena, mas afinada, brindando a audiência com uma sequência de sambas do repertório de Ciro Monteiro e Jorge Veiga, que aprendera pelo rádio, arrancando aplausos e manifestações de provação dos presentes – inclusive do pai, um dos músicos da roda, que não escondia o orgulho e acompanhava tudo com um largo sorriso estampado no rosto.
O menino era Walmir Lima, que aos oito anos de idade incompletos acabava de estrear como cantor na Festa da Conceição, uma das mais importantes do calendário de festejos populares e religiosos de Salvador e que abria oficialmente o ciclo de festas do verão baiano. A partir daí, o menino tomou gosto e levado pelo pai, passou a exibir seu requintado repertório, que incluía ainda sambas de Noel Rosa, Geraldo Pereira, Ataulfo Alves e Wilson Batista (todos do primeiro time de bambas do samba carioca, como se sabe), também nas festas do Bom Jesus dos Navegantes, do Senhor do Bonfim, do Rio Vermelho e, sobretudo, na Segunda-Feira Gorda da Ribeira – esta última, uma espécie de abertura oficiosa do Carnaval de Salvador, pois festejo tão somente profano, sem qualquer vinculação religiosa, exceto o fato de ocorrer no dia seguinte ao encerramento da Festa do Bonfim, com os barraqueiros, durante a madrugada, trocando a Colina Sagrada pelo Largo da Ribeira, também na Península de Itapagipe.
O orgulhoso pai do menino era Carlos Lima, músico que se tornaria o primeiro cavaquinista do regional da Rádio Sociedade da Bahia, conduzido pelo flautista e maestro Waldemar da Paixão, que também regia a orquestra da emissora. Os dois grupos, o regional e a orquestra, acompanhavam os cantores e calouros que se apresentavam nos programas de auditório da emissora, na época funcionando em instalações no Passeio Público, atrás do Palácio da Aclamação.
(Trecho do livro “Walmir Lima – Um Bamba da Bahia”, perfil biográfico do compositor do icônico samba Ilha de Maré (aquele do “Ah, eu vim de Ilha de Maré, minha senhora/ Pra fazer samba na Lavagem do Bonfim…”), escrito por esse colunista e lançado na última quarta-feira, 18, em evento na Assembleia Legislativa, em Salvador.)
* José Carlos Teixeira é jornalista, graduado em comunicação social pela Universidade Federal da Bahia e pós-graduado em marketing político pela Universidade Católica do Salvador.