O dia em que o bloco dos jornalistas conseguiu chegar à Praça Castro Alves – e de lá não passou

foto teixeira carnaval

José Carlos Teixeira*

“Tire essa mulher da minha frente,
Senão me acabo,
Senão me acabo,
Se ela me der sopa,
Vai haver o diabo”

(Tira essa mulher da minha frente, de

Haroldo Lobo e Milton de Oliveira)

 

Naquele tempo, o desfile das entidades carnavalescas, em Salvador, ia do Campo Grande até a Praça Municipal, onde cordões, blocos, batucadas, afoxés e escolas de samba subiam a rampa do enorme palanque oficial e se exibam ante uma comissão julgadora instituída pela prefeitura com a nem sempre fácil missão de apontar os melhores de cada categoria.

A disputa mesmo era entre as escolas de samba – sim, meu caro leitor, a Bahia já teve escolas de samba com enredo, passistas, destaques, baterias, alas de compositores e tudo mais. Mas quase todas as agremiações subiam no tablado antes de iniciar a dispersão.

Criado dois anos antes pela turma da Tribuna da Bahia, o bloco Filhos da Pauta enfrentou resistência até na escolha do nome. Dizem que um delegado da Polícia Federal não gostou do nome, alegando que a tal pauta poderia ser confundida com outra palavra mediante a supressão de uma simples vogal.

Pauta no jargão jornalístico, como sabe a ilustrada leitora, é o conjunto de informações dadas pela chefia a um repórter para orientá-lo na elaboração de uma matéria. Já a outra palavra, deixa pra lá… Diz-se também que o tal delegado não se conformou com essa explicação e sugeriu que mudassem o nome para “Os Tribunos”. A reação foi unânime: “Nem morto, pai!”. Ficou mesmo Filhos da Pauta.

Mas, se resistiram à mudança de nome sugerida pela autoridade policial – coisa que naqueles tempos da ditadura, quase sempre soava como uma ordem –, faltou aos tribunos, digo, aos renitentes jornalistas, resistência para levar o bloco à avenida nos dois anos anteriores.

Na primeira vez, em 1972, a concentração foi em frente à sede da própria Tribuna, ali na Rua Djalma Dutra, mas quase ninguém saiu de lá. Após intenso consumo no Abaixadinho e em outros bares das imediações, o máximo que se movimentou foi um reduzido grupo que seguiu até o Mercado das Sete Portas, ali perto, para forrar o estômago com o revigorante e farto mocotó servido no restaurante do alagoano Edésio. Na segunda edição, a concentração foi na sede do Clube Carnavalesco Cruz Vermelha, no Campo Grande e de lá o cortejo também não partiu, pelos mesmos motivos.

Mas naquele ano seria diferente. Para começar, tudo indicava que haveria mais adesões, com o reforço de foliões de outras redações e de um animado grupo de estudantes do curso de comunicação da Ufba, desejosos de começar um estágio na profissão pelo jornalismo carnavalesco, certamente mais alegre e divertido.

E o principal: o chefe do setor de impressão da Tribuna garantiu que a rotativa do jornal tinha capacidade de imprimir tecido. Mas tinha que ser cambraia de linho, cuja espessura e textura se parecem com a do papel jornal. Com isso, o bloco teria um padrão de tecido exclusivo para a mortalha, como se chamava aquela espécie de camisolão que ia até os pés e que se tornou durante algum tempo o traje oficial do folião baiano, até ser substituído pelo abadá.

Uma loja da Baixa dos Sapateiros garantiu o fornecimento de cambraia de linho branca na quantidade suficiente para a confecção de pelo menos 300 mortalhas. Cuidou-se então de formar um grupo de batuqueiros para garantir a parte musical. Até mesmo uma marchinha própria, cuja letra falava em pausa na busca de notícias e na troca de tal labor pela cerveja e outros produtos etílicos foi composta (já não lembro por quem, mas deixemos isso pra lá).

No meio dessa animação toda veio a treta. Em um sábado à noite, um grupo partiu, no fusca do saudoso chargista Roberto Lage, para uma noitada no Esporte Clube Periperi, no Subúrbio Ferroviário, onde seria realizado o concurso para escolher A Mais Bela Mulata do Carnaval da Bahia. Foi recebido pelo presidente do clube, o vereador Castelo Branco, que logo mandou para a mesa da turma uma garrafa de uísque Old Eight e um galeto assado com farofa. Cortesia da diretoria do clube, é claro.

Lá pelas tantas, alguém teve a brilhante ideia: convidar as candidatas que não lograssem conquistar o título de mais bela para ser a Rainha do Filhos da Pauta, o mais famoso e prestigiado bloco carnavalesco da Bahia, quiçá do Brasil, que reunia em seus quadros os melhores, mais bonitos e animados jornalistas baianos. Deu certo: três mulatas caíram na conversa mole e se comprometeram a compor a nascente nobreza do Filhos da Pauta, na condição de rainha e princesas.

O sucesso começou com a distribuição do tecido para a mortalha, impresso na rotativa da Tribuna. O padrão, concebido por Lage com o auxílio da turma da redação, eram duas páginas de jornal com fotos e ilustrações impressas em preto sobre o fundo branco do tecido, além de inusitadas manchetes em letras garrafais. Ficaram-me na memória três delas: “Salário mínimo tem aumento de 1.000%”, “ACM se filia ao PC do B” e a clássica “Cachorro faz mal a moça” – esta usada por um jornal carioca no caso de um cachorro quente estragado.

Enfim, ficou tudo pronto e partiu-se para a concentração, marcada para começar às 10h na sede do Cruz Vermelha. Por volta do meio-dia, começou uma espécie de ensaio, com os batuqueiros a mil, para que todos aprendessem a letra da marchinha do bloco.

Depois de consumidos muitos hectolitros de cerveja e outros produtos, finalmente botou-se o bloco na rua. Usando minúsculos biquínis feitos com o tecido da mortalha, as três mulatas seguiram dançando sobre uma espécie de pranchão, a pouco mais de um metro do solo, puxado por uma das caminhonetes usadas para distribuir o jornal às bancas.

Quando chegou nas proximidades da Praça da Piedade, o bloco já era um sucesso total, acompanhado por uma multidão. É que, como não bastassem as três mulatas de biquíni dançando sobre o pranchão, a cambraia de linho das minúsculas peças, com o suor, tornara-se praticamente um tecido transparente. Aquilo era, na época, uma novidade no Carnaval da Bahia. E quê novidade!

O bloco tinha corda. Mais para dar liberdade de movimentação aos foliões que pelo desejo de privatizar a avenida, como viria a ocorrer anos depois, quando alguns empresários descobriram que poderiam tomar a rua de assalto e ganhar muito dinheiro com isso.

Não havia cordeiros – essa atividade só surgiria anos depois – e a corda era estendida e puxada pelos próprios integrantes do bloco. De vez em quando, a turma que segurava a corda tinha que exercer uma força maior para afastar grupos de afoitos e entusiasmados seguidores que tentavam se aproximar para passar a mão nas mulatas.

O bicho pegou mesmo na descida da Ladeira de São Bento. Nessa altura, alguns dos filhos da pauta, sem condições físicas, já haviam deixado o bloco. Outros seguiam, mas devido aos excessos etílicos, mal conseguiam segurar o próprio corpo, quanto mais a corda.

Quando o bloco entrou na Praça Castro Alves, a galera do mal, aproveitando-se da fragilidade da defesa, conseguiu romper a corda. O que se seguiu foi uma confusão generalizada: brigas, empurrões, troca de tapas, gente correndo, gente caindo, jornalistas foliões descendo em direção à Ladeira da Barroquinha, uns escapando pela Rua Carlos Gomes, outros pela Ladeira da Montanha.

A maioria acabou se refugiando na famosa Barraca do Juvená, que era armada em um terreno na esquina da Carlos Gomes com a Montanha, onde hoje funciona um estacionamento da prefeitura. De lá, deu para ver meia dúzia de abnegados auxiliando o motorista da caminhonete a recolher e colocar a corda sobre o pranchão. Morria ali o sonho de levar o bloco até a Praça da Sé.

Ah, o leitor curioso quer saber o que aconteceu com as mulatas? Não sei dizer, mas certamente alguma alma caridosa deve ter cuidado de protegê-las e levá-las a lugar seguro. Tanto que não houve queixas posteriores.

Foi assim que aconteceu. Ou melhor, é assim que o ocorrido me vem à memória. Se excesso houver, não considere. Como diz o poeta: “Não me leve a mal / Hoje é Carnaval”.

 

 

 

 

 

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