O povo de santo continua sendo perseguido nas terras da Bahia

foto texeira nova

José Carlos Teixeira*

“– Credo! Cruz!
– Te desconjuro
Quem falou de Abaeté!”

(A Lenda do Abaeté, de Dorival Caymmi)

 

O professor Wande Abimbola, vice-reitor da então Universidade de Ifé (hoje denominada Universidade Obafemi Awolowo), na Nigéria, fez uma revelação surpreendente aos jornalistas que cobriam a 2ª Conferência Mundial da Tradição dos Orixás e da Cultura, em entrevista no amplo salão principal do Iyá Omin Axé Iyá Massê, o conhecido Candomblé do Gantois, no Alto da Federação, em Salvador, naquela tarde de 19 de julho de 1983:

– Vocês têm a felicidade de conviver com um orixá em vida. Isso é um privilégio – declarou.

O orixá em vida a que Abimbola se referia, com sua autoridade de babalaô e àwísẹ awo àgbàyé (o porta voz mundial da cultura iorubá) era Maria Escolástica da Conceição Nazaré, a ialorixá Mãe Menininha do Gantois – que naquela tarde recebia a visita de uma seleta comissão de sacerdotes liderados por nada menos que Obuluse II, o rei de Ifé, a cidade sagrada dos iorubanos, que o têm como uma figura equivalente ao papa na religião católica.

Ao meu lado, o jornalista José Barreto de Jesus arregalou os olhos. Trocamos olhares espantados. Ele foi um dos poucos repórteres que perceberam, no momento, a dimensão do que dissera o professor nigeriano acerca de Mãe Menininha. Nem todos sabiam que alguns orixás do panteão das divindades do candomblé tinham sido líderes que se destacaram por sua força, coragem, bondade e o respeito de seus povos. Como se sabe, Xangô, por exemplo, foi rei de Oió; Oxóssi foi rei de Ketu; e Ogum, rei de Irê.

O que Abimbola quis dizer é que Mãe Menininha, por sua bondade, por sua força, por sua coragem, pelo carisma e doçura com que liderava o povo de santo – e não só os do seu terreiro – havia se tornado um orixá ainda em vida.

Três dias depois, Mãe Menininha apôs sua assinatura em um documento que declarava ser o candomblé uma religião independente do catolicismo. Assinado também por outras quatro respeitadas mães de santo – Stella de Oxóssi (que articulou o movimento); Olga de Alaketu; Teté de Iansã; e Nicinha do Bogum –, o texto rompia com o conceito de sincretismo, que durante séculos permitiu a identificação dos orixás com os santos católicos.

E o mais importante: o documento exigia que o candomblé seja tratado como religião e não como manifestação folclórica, seita, animismo ou prática primitiva, como a ele se referiam as igrejas cristãs. Para não deixar dúvidas, após divulgar o texto, Mãe Stella declarou aos jornalistas: “Religião não se impõe. Depende da consciência de cada um. Mas queremos respeito para o candomblé”.

Passaram-se os anos, as cinco ialorixás signatárias do documento já partiram para o Orun, o mundo espiritual, de onde seguem guiando e acudindo o povo de santo. Entramos no Século 21, porém continuamos vendo, estarrecidos e revoltados, a todo momento, nesta nossa Bahia, pipocarem manifestações de desrespeito e de intolerância religiosa contra o povo de santo.

Mais grave quando o desrespeito parte de autoridades, como agora, quando se anuncia um projeto de lei na Câmara Municipal de Salvador pelo qual a região das dunas do Abaeté, terra sagrada das religiões de matriz africana, passaria a ser denominada “Monte Santo Deus Proverá”, tão somente para agradar aos fiéis eleitores de outra matriz religiosa.

Nas águas escuras da Lagoa de Abaeté, dizem as lavadeiras e os mais velhos moradores das proximidades, mora uma sereia de encantos e magia poderosos. Não se deve brincar com ela, Caymmi já avisava na letra da famosa canção:  Credo! Cruz! Te desconjuro!

 

*José Carlos Teixeira é jornalista, graduado em comunicação social pela Universidade Federal da Bahia e pós-graduado em marketing político pela Universidade Católica do Salvador.

 

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