Pra entrar em escola, meninas baianas ainda têm que mostrar com que pente se penteiam

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José Carlos Teixeira*

 

“O teu cabelo não nega, mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega, mulata
Mulata, eu quero o teu amor”

(Lamartine Babo & Irmãos Valença)

 

Lançada no Carnaval de 1932, a marchinha O Teu Cabelo Não Nega reinou durante décadas com uma das mais tocadas nas festas carnavalescas – e não só: tornou-se peça obrigatória no repertório de qualquer bandinha contratada para animar eventos de qualquer natureza Brasil afora.

Noventa anos depois, os preconceituosos versos concebidos pelo carioca Lamartine Babo para um tema dos pernambucanos Irmãos Valença, por encomenda da gravadora Victor, resistem apenas na memória de uns poucos. Foram cancelados pelo politicamente correto.

A marchinha que alegrou os foliões em tantos carnavais foi sepultada pelo patrulhamento, a exemplo do que ocorreu com outras músicas com letras de cunho racista, machista, misógino, homofóbico… preconceituosas, enfim.

Mas, se a marchinha foi enterrada pelo politicamente correto, o mesmo não aconteceu com o preconceito racista que seus versos traduzem tão claramente. Veja-se o caso de uma estudante de São Sebastião do Passé, cidade na Região Metropolitana de Salvador, que no mês passado foi impedida de entrar na escola por causa do cabelo.

Negra, com cabelos crespos, a menina foi barrada na porta da escola porque o coque que usava não estava bem rente à cabeça, como o das colegas que têm os fios lisos. Foi aconselhada a alisá-los, para adaptar-se às regras do estabelecimento – ou, caso contrário, a buscar outra escola.

O estabelecimento, no caso, é uma das mais de 100 escolas municipais de ensino fundamental da Bahia que adotaram um modelo militarizado, sob o beneplácito do Governo do Estado, comandado pelo petista Rui Costa, por meio de convênios das prefeituras com a Polícia Militar. Um modelo semelhante ao programa de escolas cívico-militares criado pelo governo de Jair Bolsonaro e que vem sendo duramente criticado por especialistas em educação, para os quais a militarização da educação não resolve os problemas do ensino.

Nos termos dos convênios celebrados na Bahia, a administração escolar e o projeto pedagógico permanecem com os professores, mas a parte disciplinar passa à responsabilidade de policiais militares da reserva contratados pelas prefeituras.

Na prática, cabe aos militares garantir o bom comportamento dos alunos, o que inclui fiscalizar a circulação deles no ambiente escolar, fora das salas de aulas, e o cumprimento de uma série de regras e restrições – entre elas a obrigatoriedade de cortar o cabelo com máquina número dois nas laterais e número três na parte superior, no caso dos meninos, ou penteados em coque se o cabelo for abaixo dos ombros, no caso das meninas.

A questão é que o excessivo rigor disciplinar dos militares, treinados para o duro enfrentamento de bandidos (a Polícia Militar da Bahia é uma das que mais mata), acaba resultando, aqui e ali, no cerceamento de direitos constitucionais dos estudantes, restringindo-lhes a liberdade, devassando-lhes a intimidade ou violando a vida privada deles, como no caso da menina negra em São Sebastião do Passé.

E, além do mais, não existem evidências de que a imposição de padrões estéticos aos estudantes e a severa cobrança de normas comportamentais mais afeitas à vida nos quartéis que ao ambiente escolar, resulte na melhoria do ensino.

Bons professores, projeto pedagógico funcional e material escolar adequado funcionam mais que o mero corte de cabelo dos meninos com máquina zero ou a aplicação de alisantes no cabelo crespo das meninas negras.

 

*José Carlos Teixeira é jornalista, graduado em comunicação social pela Universidade Federal da Bahia e pós-graduado em marketing político pela Universidade Católica do Salvador.

 

 

 

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